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Sofia Amorim

A matéria e a escrita

Para começar, farei uma sugestão para você, leitore, inspirada no 2º capítulo do livro de Tim Ingold, Estar vivo. Proponho que você, enquanto me lê, lixe a unha, faça uns pontos bordados ou crochetados, ou, simplesmente, tenha algo nas mãos (além do celular!) ~ um lápis, uma almofada, qualquer coisa que seja material. Enquanto lê, movimente esse objeto. Vamos ver o quanto isso atrapalha ~ ou não.




Faz poucos meses, me propus, semanalmente, a fazer um post para esse blog. Tomei essa decisão por diversos motivos: ter um lugar público em que discuto os assuntos relacionados ao curso do Travessias para além das redes sociais, e manter uma rotina de escrita. Esse movimento tem exigido algo de mim: não só regularidade no ato de escrever, mas, principalmente, ter a produção textual como uma obrigação.


Sendo muito sincera, para mim, é difícil escrever desse modo: sempre o fiz no meu tempo, sem esse peso, essa cobrança. Passei a me encontrar com os fantasmas textuais. As ideias parecem se levantar, sair correndo e nos deixar a sós. Talvez, por isso mesmo, também não fico sentada. Saio da cadeira e vou fazer outra coisa. Já falei disso algumas vezes em posts pelas redes e o post "O nada e a escrita", aqui, conta um pouco dessa sensação de não ter nada para escrever.


Eu costumava chamar de procrastinação ~ talvez, seja o nome mais usado para isso. No entanto, acredito que muites de nós já tivemos ótimas ideias enquanto fazíamos outras coisas. Vocês podem até não acreditar, mas tem alguns pensadores que dão uma sustentação a essa ideia: é a matéria, o fazer, que dá caldo para nossas criações, sejam elas escritas ou outras.

Argila pronta para ser moldada.
Colocar a mão na massa. O quanto isso colabora para nossa escrita?

Gosto muito de Gaston Bachelard ~ meus alunos sabem bem... Em seu livro “A Terra e os Devaneios da Vontade”, logo no primeiro capítulo, A dialética do energetismo imaginário. O mundo resistente, ele nos diz como o trabalho na matéria excita nossa imaginação; para ele, quanto mais a matéria nos exige fisicamente, mais trabalhamos todas as nossas questões internas: “A psicanálise, nascida em meio burguês, negligencia muito amiúde o aspecto materialista da vontade humana. O trabalho sobre os objetos, contra a matéria, é uma espécie de psicanálise natural. Oferece chances de cura rápida porque a matéria não nos permite enganarmo-nos sobre nossas próprias forças.” (Gaston BACHELARD. A Terra e os Devaneios da Vontade: Ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, pp. 24 e 25).


Tim Ingold, autor citado no início, também nos traz alguns pensamentos nesse sentido. Destaco um trecho do primeiro capítulo (mas recomendo fortemente um dos últimos, o belo A textilidade do fazer): “Além disso, conforme ele [o ser humano] trabalha, não são apenas os materiais que são transformados. O trabalhador também é modificado através da experiência. As potencialidades latentes de ação e de percepção são desenvolvidas. Ele se torna, mesmo que muito ligeiramente, uma pessoa diferente.” (Tim INGOLD. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015).



mulher mexendo na terra do jardim
Fazer coisas diferentes. (Imagem: Unsplash, NeONBRAND)

O trabalho na matéria realmente tem um poder impressionante em nossas produções ~ e isso pode ser absolutamente qualquer coisa, da argila à louça, do tomar banho à costura, da jardinagem ao conserto de algo.


Pensando aqui com meus botões, acredito que saímos de um lugar de incertezas (não sei o que escrever/fazer/criar) para outro em que já temos alguma noção ~ ou não, espera, quase isso: na verdade, tiramos o foco de um vazio e ativamos outras partes nossas, criando espaço para que as ideias apareçam.


Só para deixar claro ~ é óbvio que nem todo processo de criação é assim. Não é porque eu passei a manhã fazendo faxina que já tenho um romance pronto em minha cabeça. E nem há garantias de que, por ter feito algo na matéria, eu consiga resolver meu bloqueio. Aliás, na escrita, na arte, na vida, não há garantias.


Nos últimos dias, precisei fazer muitas coisas diferentes até que eu conseguisse colocar, no papel, algumas palavras. Alguns textos vieram enquanto eu cozinhava, outros, em um momento em que escutava música. E alguns, vou te falar, foram muito difíceis: escrevi, reescrevi diversas vezes, numa tensão que racharia as paredes.


Ao longo dos anos, eu pude ir percebendo como cada matéria me leva para um tipo diferente de escrita. Não consigo afirmar que há um padrão absoluto, no entanto, posso enxergar que algumas matérias costumam funcionar e outras não. As circunstâncias contam bastante, mas também o gênero textual. Para a poesia, quase toda matéria funciona. Para textos técnicos, acadêmicos e outros, costumo precisar lidar com mais de uma materialidade.


A proposta, enfim, é abandonar um pouco o âmbito mental na criação dos textos: ao invés de ficar sentade, queimando as pestanas, propor-se outros modos de se lidar com a escrita ~ fazer algo com as mãos pode ser uma delas.


E, agora, cara leitore, como você se sentiu lendo e movimentando suas mãos enquanto lia? Você costuma fazer isso ou sente que te atrapalha? O que você faz quando suas ideias estão bloqueadas? Me conta aqui nos comentários.




[Vou pedir licença e aproveitar para fazer uma (auto)promoção. Acredito que esse seja um dos diferenciais do curso do Travessias Textuais: trabalhar a escrita a partir do exercício na matéria. Se você tiver interesse, aqui você tem mais informações sobre o curso e aqui, você pode deixar seu nome em uma lista de interesse para uma próxima turma.]

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