Véspera do seu aniversário, acorda mais cedo e observa o sol se levantar atrás dos morros que recortam a paisagem da sua janela. Não se sente cansada apesar da noite mal dormida. Não conseguia parar de pensar na carta que tinha recebido no dia anterior. No envelope não tinha a informação do remetente, pensou que fosse mais uma daquelas malas diretas para arrecadar fundos para um dos milhares de projetos sociais que se multiplicaram nos últimos anos. Desde que surgiram as redes sociais, cartas são objetos cada vez mais raros, em sua caixa de correio só recebe anúncios de pizzaria, farmácia ou a conta de luz. Ao abrir o envelope e ler as primeiras linhas, seu coração acelerou dentro do peito e imediatamente foi transportada para o passado, quando, aos vinte e poucos anos, tinha acabado de sair da faculdade, com tantas expectativas pela frente.
Observa o sol se levantar atrás dos morros e pensa em como chegou até ali. Será que inconscientemente havia planejado aquele caminho ou foi guiada pelo fluxo contínuo dos acontecimentos? Nunca foi de fazer muitos planos, sempre teve dificuldade de olhar para além do presente, acostumada a viver um dia de cada vez. Agora, perto de completar 60 anos, muitas vezes sua mente vagava, tentando imaginar como teria sido a sua vida se tivesse feito outras escolhas no passado. E agora essa carta.
Quando adolescente, sonhava em se tornar uma mulher independente ao mesmo tempo que recortava fotografias de modelos e atrizes nas revistas e criava histórias, sempre com muito romance. O mito do amor romântico, apresentado pelas novelas da tv e romances açucarados vendidos nas bancas de jornal, povoaram os seus sonhos de menina. Hoje acha tudo isso uma grande besteira apesar de ter, de certa forma, seguido o roteiro: se casou, teve filhos e está casada há quase 30 anos, diferente da maioria dos seus amigos que já está no segundo ou terceiro casamentos. Interrompe o fluxo de pensamentos, vai até a cozinha e prepara um café. Um bando de maritacas atrai sua atenção e pensa como é bom poder ouvir os sons dos pássaros mesmo morando em uma cidade grande. Ao passar pelo corredor, vê sua imagem refletida no espelho e sorri ao perceber ainda a imagem daquela moça de 20 anos, apesar das marcas do tempo em seu rosto e dos centímetros a mais distribuídos no seu corpo. Apesar de ter sempre cuidado do seu corpo e de ser, de certa forma, vaidosa, nunca quis fazer nenhum tipo de intervenção que mascarasse seu envelhecimento. Hoje se preocupa menos com a aparência do que antes, o que realmente quer é se manter lúcida e independente, como sempre imaginou que seria quando envelhecesse. E esse momento chegou, mais rápido do que imaginava. Começou a perceber seu envelhecimento através do olhar dos outros. Ou melhor dizendo, a falta desse olhar. Apesar de parecer mais jovem do que de fato é, pelo menos é o que dizem, há tempos percebe que se tornou invisível aos olhos das pessoas, como acontece com todos os velhos, pelo menos nessa parte do mundo. Mas pensa que se tornar invisível também traz algumas vantagens, já não precisa se preocupar tanto com a aprovação dos outros.
Lê mais uma vez a carta. Apesar das poucas linhas, enxerga muitas camadas em cada uma daquelas palavras. "Sei que você não esperaria me rever depois de todos esses anos, mas te escrevo propondo um último encontro, acho que ainda temos muito o que dizer um para o outro. Estarei no bar_ no próximo sábado às 17 horas".
Se surpreendeu ao perceber o quanto ainda permanece viva a lembrança daquele primeiro encontro. Era uma noite de festa na praça próxima à estação de trem. Naquela noite, quando seus amigos foram pra casa, ela decidiu continuar ali, em comunhão com a multidão de desconhecidos. Entrou em um antigo galpão onde acontecia um show. O lugar estava à meia luz e o ar impregnado pela fumaça dos cigarros. Encontrou um ou outro conhecido, ninguém que quisesse como companhia naquela noite. Não se lembra mais porque quis estar ali sozinha, será que inconscientemente esperava que algo de novo acontecesse? Provavelmente sim, com todos aqueles hormônios no auge, somados à uma noite com boa música e bebida, só faltava mesmo uma companhia. Mas a noite avançava e começou a pensar em voltar pra casa, não sem antes tomar um último gole de cerveja e fumar um cigarro. Enquanto procurava o isqueiro na bolsa, um jovem bem magro, com um corte de cabelo nada convencional, acendeu seu cigarro e falou qualquer coisa que ela achou divertida. Ele não era bonito mas tinha qualquer coisa que a atraía. Depois de trocarem algumas palavras e sorrisos, dançaram, se beijaram e ficaram juntos até o dia amanhecer. Ele anotou seu telefone no maço de cigarro vazio e cada um seguiu seu caminho, sem imaginar que aquele encontro seria apenas o primeiro. Era um tempo em que os encontros eram mais fortuitos e os reencontros muitas vezes precisavam ser planejados.
Até aquela noite, colecionava mais desencontros do que encontros. Mas alguns encontros são capazes de mudar o rumo das nossas vidas. Ou quase.
Sem conseguir parar de pensar na carta, desce o elevador, cumprimenta o porteiro e caminha até o sebo que fica a mais ou menos um quilômetro do seu apartamento. Do que gosta na cidade grande é de circular pelas ruas cheias de pessoas indo e vindo, muitas histórias, a rua como um palco de encontros inesperados. Nos últimos anos, porém, as ruas se tornaram o reflexo da crise política e econômica do país, cada vez mais se vê vendedores de quinquilharias nas calçadas, famílias improvisando moradias embaixo dos viadutos, jovens zumbis andando sozinhos ou em bandos, desnorteados pelas drogas, jovens nos semáforos fazendo malabarismos, fantasiados de palhaços, famintos revirando as latas de lixo. Assistimos a desumanização acontecer em ritmo acelerado de dentro das nossas bolhas. Será que ainda existe alguma chance de salvação para a humanidade?
Inevitavelmente, ao pensar nisso, sente no corpo os efeitos da angústia que sempre a invadiu ao pensar na própria morte. Mesmo quando ainda era muito jovem, quando seu fim parecia tão distante.
Em sua infância, não se falava de morte, as crianças não iam à velórios e enterros, isso era assunto de adultos. A morte se revelou para ela quando sua melhor amiga perdeu o pai e, a partir deste dia, passou a atormentá-la o medo de que seu próprio pai tivesse o mesmo destino. Com o passar dos anos, tomou consciência da sua própria finitude mas não se angustiava tanto porque tinha certeza de que até que chegasse a sua vez (daqui a muitos e muitos anos!), a ciência, ou talvez o próprio Deus (ainda acreditava em sua existência), já teriam resolvido esse problema e todos seriam imortais.
Ouve o sino tocar perto da galeria onde fica o sebo. Imediatamente se lembra de um sonho recorrente em sua juventude onde se via em frente a um muro de pedra muito alto, ou uma montanha, quem sabe, junto com outras pessoas, à espera do juízo final (olha aí a paranoia do juízo final, incutida pela igreja). Não se lembrava mais em detalhes do que aconteceu, só ficou a imagem de um paredão de pedra e a sensação de que dali não se poderia ir pra nenhum outro lugar. Culpa e medo foram os únicos ensinamentos que ficaram das aulas de catecismo, por isso não incentivou que nenhum dos filhos fosse catequizado, apesar de todos terem sido batizados.
Observa o vendedor de livros chegando com sua mala de rodinhas, cheia de remendos. Arruma os livros com a capa virada para a calçada, apoiados ao longo da mureta da igreja. Ali perto, uma senhora tenta vender lenços de tecido na porta da igreja, sentada em sua cadeira de rodas, o rosto pintado de forma exagerada, com laços no cabelo e um vestido que a faz parecer uma boneca velha. Ao chegar na praça, observa os moradores de rua espalhados pelos bancos curvos de concreto. Alguns se agrupam e dividem uma garrafa de cachaça, outros observam os velhos que se reúnem ali todos os dias para jogar cartas ou se misturam às pessoas que passam por ali apressadas, fingindo não notar a presença incômoda destes habitantes da cidade.
Passa o resto da manhã no sebo, sempre gostou de se perder no meio dos livros, de ser invadida por tantas histórias. Tanto que se tornou amiga do dono, um jornalista que anos atrás abandonou uma carreira sólida para investir em seu sonho de ter uma livraria. Sempre admirou pessoas assim, capazes de mudar o rumo de suas vidas, que se guiavam pelos seus desejos e sonhos. Às vezes se perde por horas em histórias postadas nas redes sociais, pessoas que largaram a segurança de um trabalho bem remunerado e foram viver longe das grandes cidades, mais próximos à natureza. Raramente falam das dificuldades enfrentadas, dos mosquitos à falta de grana, só postam fotos de lindos entardeceres e belas noites de luar. Lembra de quantas vezes se imaginou vivendo outras vidas, mas nunca sentiu que tivesse um desejo tão forte que justificasse uma mudança de rota.
Nos encontros da família, muitas vezes fica ali só observando, sem ouvir o que dizem, tentando imaginar o que verdadeiramente pensam sobre ela. Certamente veem ali apenas uma velha mãe/avó, não fazem ideia de como ela permanece atualizada nos temas da contemporaneidade, fruto de suas leituras e conversas com pessoas bem mais jovens.
Apertou os olhos como se assim pudesse forçar a memória a recordar aquele momento que ficou gravado em sua retina.
Será que a necessidade de construir uma família é a forma que encontramos para nos proteger contra o esquecimento? Não tem dúvidas de que seu maior medo é de não se lembrar, maior até do que o de não ser lembrada.
(Texto escrito por Rosana Zouain, para aula do Travessias Textuais)
Comments