Não sei sobre o que ou por onde começaria uma história de mim mesma, penso que não dou para personagem e tão pouco para narradora. Não que eu não tenha nada para contar, mas isso de ficar visitando o passado não sei se me interessa. Sempre tive pouca memória e esse pode ser um sinal para deixar quieto o que já foi. Sei que tem essa conversa que o passado, principalmente os erros, dizem, pode ajudar a viver o melhor o presente, mas eu nem vivo o presente direito, também não termino as coisas que eu começo e isso eu lembro que já vem de antes, talvez esse passado aí que tô querendo contar eu nem vivi...
Eu também tenho preguiça de pessoas, por isso quando criança, eu me dava bem com os pés de laranja que tinha lá na fazenda, deles até daria para contar, me fazem lembrar que um dia já tive hábitos, porque eu era de apanhar laranjas grandes todos os dias lá pelas 9h. O pé de laranja tinha a copa bem fechada, não era de subir, era de uma qualidade diferentes, tinha até espinhos, igual limão, e folhas bem lisas e cheirosas, ficava atrás de casa. Eram dois, pés de laranja gêmeos. Hoje as pessoas se entretêm com tantas coisas aleatórias, na época, nem tinha celular, então, não estranhem que alguém gastava tempo com catação de frutas.
Nunca fui uma pessoa muito sentimental, não era das de se encantar, apaixonar, era criança, normal. Gosto da praticidade de ser criança. Falei disso, porque comecei a falar dos pés de laranja e me lembrei do dia que descobri que tinha ódio no meu coração. Um dia decidiram que era preciso cortar os pés de laranja para passar uma estrada atrás da casa. Tentei argumentar: quem precisa de estrada se estamos presos aqui nesse mundo? Não houve acordo. Eles foram arrancados e senti raiva, um sentimento que pouco me visitava. “Pouco me visitava”, que engraçado, pareceu poético, deve ser isso da infância que me tirou um pouco o ranzinza, porque não sou disso de poesia. Enfim, até aí eu só senti raiva mesmo, não sabia que podia piorar. Um dia eu brincava na grama de onde arrancaram os pés de laranja, sim, até ali nada da tal estrada urgente que precisava passar atrás da casa, caí no buraco onde eram os pés de laranjas que foram arrancados e torci a minha perna. Foi aí que descobri que aquela tristeza e raiva que tinha sentido no dia da derrubada não era o máximo de dor que podemos sentir por dentro. Foi nesse dia que eu descobri o ódio no meu coração. Minha testa se franzia de um jeito que nem consigo imitar. Por meses ensaiei uma vingança, era algo como deixar um balde de mangas podres para cair na cabeça de alguém que abrisse a porta do galpão da fazenda, se não acertasse o metido a lenhador que cortou os pés de laranja e deixou um buraco para que eu caísse, seria o responsável pela estrada que nunca saiu ou algum cúmplice desses aí. Eu vivi e ensaiei bastante essa vingança que nunca aconteceu, mas deveria, já que, até hoje, tenho a cicatriz desse episódio, a mania de cair em buraco, a falta de vitamina C, uma mancha na canela e o ódio que nunca saiu do meu coração e atualmente tem me visitado bastante, quase que todos os dias, porque os pés de laranja eram, assim como eu sou, aqui no Brasil.
(Texto escrito por Vivian Nantes, para aula do Travessias Textuais)
me emocionou !