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Quando a escrita vaza: textos íntimos e elaboração

Sofia Amorim

Passei algum tempo sem escrever por aqui. Entre demandas de estudo e vida, escrevi em outros lugares: meu diário, cantos das páginas de textos ~ precisava elaborar um processo de luto. Enquanto escrevia, fui percebendo o quanto aquela situação mexia comigo, o quanto diversos processos estavam acontecendo ao mesmo tempo e estavam intimamente relacionados às dores do luto vivido. Escrever foi como ter uma amiga querida, bem pertinho, capaz de acolher todas as intensidades e tristezas que estavam me tomando. Como lidar com esses processos, nem sempre fáceis, que nos tomam por inteiro?


[Tudo em suspensão. Menos a morte, a caminhar lentamente em sua direção, em um abraço que se materializa aos poucos. Ainda não. Quase.]


A escrita tem inúmeras funções ~ comunicação, diversão, informação, conhecimento. Entretanto, uma função importante relaciona-se com a criação de um lugar de elaboração dos nossos processos subjetivos, quer dizer, tudo aquilo que nos passa, nos atravessa: nossas emoções, nossas angústias, alegrias e tristeza, medos etc. Através do exercício da escrita, torna-se possível lidar com aquilo que está nos afetando e que nem sempre encontramos espaço para tal. Diz Roland Barthes que “a escrita começa onde a fala se torna impossível”, acredito que o caminho é por aí.


[Pré-luto. Quase-luto. Remoer a tristeza aos poucos. Segurar o choro para o momento final ou ir chorando aos poucos para despedir-se com firmeza?]


Essas escritas não carregam todas as regras e obrigações dos textos mais “comunicativos”. São íntimas, inventivas, desobedientes. Sem as amarras das “obrigações textuais”, abrimos caminho e podemos elaborar melhor os processos. Não temos regras por não temos um observador? Temos nós e o papel (ou a tela). Enquanto as palavras vão pulando para as linhas, as amarras parecem ficar mais evidentes ~ quais palavras despencam e quais não despencam de nós? quais se prendem, quais se soltam, nesse jogo de colocar-se no papel? Quando soltamos as amarras, o que aparece?


[Não sei o que dizer para meu avô. Já é iminente a sua morte.

Adeus, vô.

Talvez, eu quisesse ter te dado um último abraço apertado,

desses que você me dava quando eu era pequena.]


Por não termos obrigação nenhuma com leitor algum, a preocupação com a forma é desnecessária. Naquele momento, não importa qual gênero virá, nem se há coesão ou coerência. Apenas a vontade de se libertar daquele sentimento, apenas a necessidade urgente de nomear o que passa, ou, talvez, como nos diz Suely Rolnik, “dar língua aos afetos que pedem passagem”. Essa liberdade, especialmente nesses momentos, contribui para que o fluxo dos afetos aconteça e chegue ao papel.


[Agora, nesse momento em que a esperança foi embora, me agarro a todas as memórias. Escrevo-as para se eternizarem. Ainda não tinha sentado e chorado até agora. Antecipo as lágrimas e sou puro rio.]


Ainda que estejamos em uma escrita “livre”, ela demanda algo: a aparente falta de regras é uma pegadinha. Precisamos escolher as palavras, mesmo que em um gesto sem pensar, como o ato de caminhar, que não pensamos para mover as pernas. Vamos dando voz a um ou outro assunto, a um ou outro viés. Assim, enquanto colocamos palavras no papel, as questões parecem deixar de nos oprimir. Organizar as palavras como quem ordena o guarda-roupa, ordena os pensamentos, ordena a confusão da gaveta de meias e sentimentos.


[Nesses dias de quase-luto, venho pensando no que dizer na despedida. Já se despediu de alguém próximo e humano, desses que não são nem a cara da maldade, mas também não foi só bondade? É mais difícil de lidar do que parece. Não tem a revolta da pessoa muito boa ou o alívio do crápula. Tem inquietação.

E já nada disso faz sentido para mim. Escrevi e já discordo.]


(Quase toda semana eu escuto a associação da escrita ao processo terapêutico. Eu entendo a associação e a vejo surgindo nas linhas desse texto. No entanto, a relação de quem escreve e as palavras é muito diferente da construída entre paciente e terapeuta. As ferramentas que usamos na terapia são diferentes das usadas na escrita. A elaboração é diferente também. As relações são outras. Não tenho muita certeza se é possível afirmar uma “escrita-terapia”, nem se é possível negá-la. Não é contrariar a capacidade incrível, e talvez inegável, de uma construção de si enquanto se escreve. Nem negar a importância da terapia. Talvez, seja só o cuidado de não colocar todas as coisas do mundo em lugares de cura.)


[Acho que é isso, vô, quero guardar essa memória: a dos poucos momentos em que o senhor gargalhou quando eu ainda era criança a brincar em seu colo.]


Essa escrita – muito próxima do que fazíamos na adolescência, ou a dos apaixonados, ou a dos imensamente tristes, ou a dos temerosos – é uma escrita que vaza. Você tem escrita que vaza? Por onde ela escorre? O que ela diz?




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