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Pão, pandemia e papel


Image by Artur Rutkowski, Unsplash

O fenômeno foi interessante: algumas semanas após o início da pandemia, um ano atrás, nos deparamos com um monte de gente fazendo pão caseiro ~ eu, inclusive. Assim como, com uma turma boa que resolveu compartilhar suas escritas.


A farinha saiu do fundo do armário, os cadernos antigos foram encontrados, as mãos, despertas.


Fazer pão como quem faz poesia. Fazer poesia como quem faz pão.


(E isso me lembra Bachelard e seus capítulos sobre as massas em dois de seus livros. Fala de poética e fala de pão com tal beleza que me fazem suspirar tanto quanto o aroma da cozinha enquanto assa a massa.)


Processos de pão. Processos de escrita. Parecem tão distantes aos olhos distraídos.


As palavras, por dias, alimentadas – farinha e água e só. Todo dia aquela inquietação. Joga uma parte, aumenta o restante. De repente, sem muita explicação, começa a vasar do vidro, preencher os cadernos.


Às vezes, a gente adia. A massa pede um dia inteiro, um dia todinho lidando com aquilo. Adio minha escrita como adio o pão ~ e é preciso um certo cuidado para não matar aquilo que fermenta (em nós? na geladeira?).


Em uma manhã resoluta, deixar as palavras fermentadas em temperatura ambiente. Misturar a farinha e a água, o papel e o lápis. Autólise. Horas em que nada parece acontecer de fato, mas, de fato, muito acontece. Alimentar o levain, separar o que usa, o que guarda. Queria colocar todas as palavras na mesa, mas é sempre bom guardar um pouco para mais tarde.

Colocar a mão na massa, os dedos grudentos, a força na medida, o cheiro fermentando a cozinha. Queria que esse texto fosse a poesia da minha sensação de sova. Aperto a massa como aperto a mim mesma ~ é preciso encontrar uma delicadeza, uma sensibilidade e frear a vontade de amassar indefinidamente. Deixar os rabiscos descansarem, as palavras dormem, mas não muito. Dali um instante, vou dobrá-las um pouco. E dali mais um pouco, outra vez. E outra vez. Quantas dobras são necessárias para se fazer poesia?



caderno antigo de receitas
Image by Annie Spratt, Unsplash

Já à noite, todos cansados ~ massas, poetas, poemas, padeiras ~ debruçamo-nos uma última vez sobre o pão-texto. Perceberemos a umidade, acertaremos o ponto, o ritmo, deixaremos espaço para que a vida brote e cresça por ali.


Pela manhã, o forno quente, poesia pronta para assar. O desforme se solidifica, as palavras se organizam. A cozinha se preenche do som oco do pão bom.


Junto ao café fresco, trazemos à boca uma fatia intensa dos nossos desejos, materializados. Poemas com seus espaços, cheios de ar, nos deleitam.


Talvez, seja isso: talvez, nesses tempos isolados, tenhamos enxergado um espaço para que tudo fermente em nós. Talvez, os processos adormecidos por uma vida fabricada tenham sido acordados ~ e encontramos uma possibilidade de vivenciar o sabor levemente azedo, o momento decididamente pesado, de outros modos.

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