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Convidada em Travessias: A mulher e a escrita, Luciana Aguilar

Sentou-se para iniciar a escrita, estava tensa, nunca antes havia pensado em tal possibilidade, escrever e ser publicada. Sim, era um texto que ela desejava a tempos publicar e chegou assim, como num susto, a oportunidade.


Ela tinha muitas ideias na cabeça, começou a rascunhar, escreveu a primeira palavra e... manhêeeeee. Um chamado longo e que parecia desesperado, mas não era... era fome. O menino tinha acordado, mas, ainda deitado, chamava-a por uma atenção.


Se levantou da cadeira, foi até o quarto do menino e pediu que levantasse e arrumasse a cama. Naquele momento, pensou, que bom, assim, passo um café e o sofrimento da escrita vai embora.


Serviu o filho, tapioca era o costume pela manhã e uma manga que precisa ser cortada, segundo o menino. Passou seu café, como de costume, enquanto lavava a louça da manhã. Se serviu e se sentou decidida a não abandonar o papel. Pegou a caneta, releu o texto e lembrou da lista de compras, era dia de mercado. Se levantou, foi à geladeira consultar se tinha ovos suficientes para a semana ou se incluiria na lista.


Voltou à escrita, releu o texto, pegou a caneta, nada, nenhuma ideia. Riscou no papel o símbolo do infinito, como se buscando apoio. Nada. Levantou, preparou almoço, lavou a louça, colocou a roupa na máquina, estendeu roupa, colocou comida para os gatos, varreu a casa.


As ideias de escrita não saíam de sua cabeça, sabia o que queria escrever, mas toda vez que se sentava, pronto, perdia o fio. Outro pensamento recorrente aparecia, em frente à folha de papel com a caneta na mão: esse texto não tem sentido. Não tem começo, meio e fim. Não dá.



Dizem que escrever requer silêncio. Lembrou do agradecimento impresso num livro que leu certa vez, o escritor (veja bem, o escritor, um homem) agradecia à esposa e aos filhos pelo silêncio que eles lhe proporcionaram para que se dedicasse a escrita. No mínimo curioso, não?


O menino está batendo bola lá fora e volta correndo para contar o chute certeiro com o pé esquerdo que deu na bola. Ela volta sua atenção para ouvir os detalhes do acontecimento que deixou o menino tão radiante, ele pede: vem ver, mãe. Ela vai.


Hora da janta, mais preparos com alimentos, mais louça... ih, a roupa ainda está no varal.

O menino dorme, mas antes pede uma história.


Ela volta à mesa para escrever, vê a caneca ainda com café, esqueceu de manhã ali. O café passou o dia a esperá-la, assim como o texto.


Insegurança, agora com a gramática, será que está correta? Lembra que a editora tem alguém que fará a revisão de seu texto, mas isso a impede de continuar, relê, agora, procurando erros de concordância. Lembra das aulas de português na escola: coerência. Depois, lembra da aula da faculdade: coesão. São mesmo coisas diferentes? Faz busca na internet. Começa a ler artigos sobre o assunto.


Lhe ocorreu algo... será que a escrita é dolorosa igual para todo mundo? Ou só ela sente isso? Uma angústia toda vez que se senta para escrever, uma dor de escrever. Não reconhecer nas palavras escritas por ela a fluidez lida em tantos e tantos textos que conhecia, a comparação com publicações da internet ou de suas autoras preferidas.


Será que sua angústia vinha da escola? Já que seguia ouvindo, mesmo depois de tantos anos passados, a professora do primário lhe dizer que sua redação não tinha começo, meio e fim.


Mas o que é isso de escrever?


Será que desejava escrever?


Afastou os pensamentos e voltou ao texto. Novo pensamento, e os afetos do dia? As coisas que nos acontecem, atravessam o texto? Decidiu que não pensaria mais na escrita e foi dormir.


Os dias passaram, os meses passaram, uma ou duas linhas eram escritas, relia muitas vezes, as perguntas se multiplicavam na cabeça, mas quem vai ler isso? Texto ruim.


Nos pensamentos, o texto crescia e floria, mas era só se sentar na frente do papel, a angústia e as cobranças apareciam. Repetição de palavras. Excesso de palavras valorativas. Revise seu texto.


Decidiu participar de cursos de escrita, como escrever um best-seller. Não que fosse escrever um, mas precisava saber por onde começar. Não se inscreveu. Depois decidiu ler mais. Buscou por autoras mulheres, sabia que acharia intensidades que a inspirariam. Não leu.

Seu texto tinha crescido bem a essa altura, oito páginas, informação importante para ela. Os montes de roupas e de louça lavados também, se acumulando num canto, os cuidados com a criança e a casa rarearam. Os gatos seguiam precisando de tempo.


Ela relia e mudava uma ou outra palavra, coesão, mas ... e o fim?


(Texto escrito por Luciana Aguilar, convidada do Travessias Textuais)



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