O tema desse mês nas redes do Travessias é Autoria e autoridade. Engraçado, não?, para falar sobre autor-autoria-autoridade, parece, justamente, que eu preciso ter alguma dessas palavras associadas a mim: quem sou eu para falar sobre esse assunto? O autor - esse "ser" sagrado e inalcançável... quem sou eu para falar dessa figura mítica? Esse pensamento é justamente o centro dessa discussão, pois é nessa fala que podem acontecer os tropeços.
De um lado, pensa só, realmente, precisamos mesmo de alguma noção do que estamos falando: nós temos lidado com "pseudocientistas" há algum tempo e o resultado é terrível - a pandemia escancarou isso. Lá na filosofia, tem algo que se discute sobre a diferença entre "opinião", doxa, e "conhecimento", episteme. Nem toda opinião é baseada em conhecimento - e é importante, sobretudo em algumas áreas, diferenciar um do outro, afinal de contas, a gente não quer que contador faça nossa avaliação médica ou que um médico faça nossa contabilidade, por exemplo. A opinião, obviamente, todos podem dar - mas será que todos temos conhecimento suficiente para tratar daquele assunto?
Até aqui, concordei com o pensamento hegemônico - quer dizer, o pensamento que "manda", que direciona a maioria. Só que pensar a autoria e a autoridade somente desse modo pode ser extremamente limitador, principalmente, quando outros aspectos entram em jogo, em áreas menos óbvias que a medicina ou a contabilidade. Quem define o que é conhecimento e o que não é? Quem diz se aquela pessoa pode ou não falar? E é aqui que a coisa pega.
De modo geral, as pessoas validadas são as mesmas de sempre: homens, brancos, ricos, heterossexuais, do globo norte, o que faz com que as pessoas consideradas autoridades sejam sempre as mesmas, assim como sua visão de mundo. As consequências, em uma sociedade com apenas esse olhar, são terríveis para quem não se encaixa nesse perfil - serão sempre questionados, desautorizados, excluídos e invisibilizados. Aposto que você, caso não pertença ao grupo validado, já se sentiu assim em algum momento, seja por causa de outras pessoas, seja por si mesma. Então, pergunto: como nos reconheceremos como autoras e autores se há um mundo nos questionando o tempo todo?
Para endossar esse caldo, queria trazer outro ponto para essa conversa. Alguns pensadores e pensadoras começaram a trazer a ideia de que o autor ou a autora é apenas uma função, quer dizer, só acontece no momento em que se produz algo. Se pensarmos na escrita, a autoria só aconteceria no momento em que se escreve - nem antes, nem depois. De fato, podemos dizer que faz sentido e traria uma solução para parte dos problemas de quem é excluído pelo cânone. Na prática, no entanto, a função-autor continua não resolvendo muitas das questões enfrentadas. Na época em que esse pensamento veio à tona, na década de 1970, não havia ainda a discussão sobre o lugar de fala: estávamos em meio às revoluções que tanto mudaram a sociedade, ligadas à sexualidade, aos direitos civis e trabalhistas, aos questionamentos políticos. Nesse cenário, buscava-se quebrar a forma dada do que era um indivíduo. Passados cinquenta anos, hoje em dia, principalmente com a volta da extrema direita e, com ela, o reforço ao machismo, à misoginia, ao racismo, `homofobia, etc., tornou-se fundamental discutir e definir o lugar de quem fala. No começo do século XXI, é imperativo saber quem fala e não atribuir à autoria apenas uma função.
Então, temos, até aqui, alguns pontos sobre a autoria e autoridade - nenhum deles simples e ainda resolvido sobre o tema. Talvez, esse seja um problema muito particular e que me é tão caro por estar imersa em um curso de escrita. Eu, como professora, escuto, quase toda semana, alguém se questionando sobre ser ou não autora. Aqui, não estou falando sobre a profissão de escritora, escritor, em que recebemos algum dinheiro por nossas linhas escritas. Para mim, autoria não está restrita a quem receber para escrever ou a quem publica seus textos. Se não estou falando da profissão, então, do que estou falando? Veja: Emily Dickinson não publicou nenhum livro enquanto estava viva - ela não pode ser considerada autora, então? E quem escreve o tempo todo e nunca publica, vivo ou morto? Só é autor/autora quem publica?
Se a gente observa essas questões bem de perto, vai percebendo o quanto esse tema da autoria é complexo mesmo. Nesse contato com outras pessoas que escrevem, devido ao trabalho com o Travessias, mas também em minha vida pessoal, é surpreendente (e triste) ver a quantidade de pessoas que não se validam como autoras, apesar de estarem o tempo todo criando. E aqui temos mais um ponto relacionado à autoria - a criação. Um dos aspectos discutido também é o da capacidade de criar algo único, ou, pelo menos, que traz a marca de quem o fez. Outra vez, se não tomarmos cuidado, entramos em outra seara... já que a pergunta sobre o que é único e original e quem determina isso também caberia aqui. Talvez, um modo de se pensar nisso, é relacionar esse conteúdo "único e original" não a outras pessoas, mas a si mesma. O autoral se aproxima, então, daquilo que tem a ver conosco, que exprime quem somos/estamos, que nos singulariza, se distanciando da comparação com os outros. Se pensarmos desse jeito, podemos, então, nos autorizar, nos considerarmos autoridade, ao menos, daquilo que produzimos, deixando de lado todas as sombras que a sociedade faz em nós, ao nos questionar.
Ao nos implicarmos no exercício da escrita, podemos nos questionar qual é a nossa autoridade para dizer o que estamos dizendo ali, naquelas palavras; também podemos pensar o que nos torna autoras daquele texto. As perguntas são importantes, mas é preciso um cuidado para que elas não nos silenciem. Perceber-se como autoridade e como autoras de nossos textos é um passo muito importante na construção da nossa imagem como quem escreve - aos poucos, vamos encontrando nossa voz, afirmando nosso modo de se colocar no mundo, e isso passa por reconhecermos a autoridade que há em nós. Autoria e autoridade poderiam ser vistas como um caminho na trajetória de quem escreve.
Esse é um assunto bem mais complexo e profundo do que trouxe aqui. Ainda assim, percebo como esse tema ainda não foi debatido o suficiente, não exatamente nos meios acadêmicos, mas, principalmente, com as pessoas que, diariamente, precisam lidar com esses questionamentos.
Depois de tantos parágrafos, vocês percebem como não cheguei à nenhuma conclusão fechada? Apenas trouxe mais perguntas para esse tema. Não há como chegar a uma única resposta, justamente, porque essa é a questão: a autoria e a autoridade têm algo de particular, de individual e, se atribuímos essas questões a um só viés, passamos a excluir aqueles que não se encaixam no modus operandi da sociedade.
Por isso, transformo esse texto em convite ao diálogo: para você, qual é o sentido de autoria e de autoridade? Algum dos pontos que eu trouxe aqui fez sentido para você?
(P.S.: esse texto é fruto da minha pesquisa no mestrado. Em breve, coloco o link da dissertação aqui, para quem tiver interesse em conhecer o trabalho.)
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