Era Sexta-Feira, 15 de Outubro daquele que foi um ano intenso. Ana acordou mais tarde, rosto com os fragmentos borrados de um rímel barato, gosto forte na boca, memória de dançar até de madrugada com a luz entrecortada sendo observada por entre espelhos refletores de suas misteriosas partes à sombra de um possível talvez. Quando se deu conta percebeu que havia deixado a identidade na pia molhada do banheiro do bar, virou para o outro lado da cama e absolutamente sem nenhum rastro de culpa voltou a dormir. Juliana, por outro lado, acordou cedo demais, uma seda transparente no corpo, pés no chão frio de cerâmica, xícara amarela com café preto e açúcar, um ar insone meio blasé. Ela insistentemente caminhava em meio às samambaias de casa, aquelas folhas caídas dos vasos pendurados, havia trazido todas da sua avó, uma digna herança, sua floresta particular. Pensava na avó com bastante afeto, ela mesma se achava uma velha, apesar da idade. Lúcia alimentava os cães. Costumava entrar pela porta lateral que dava acesso ao jardim com nome de mulher – jardim Sofia. Ela não conhecia outra Sofia a não ser o jardim. Naquela manhã, sentou-se ao piano para compor uma canção, mas de repente lembrou rindo de si mesma que não sabia tocar. Ficou ali, fingindo saber, com vontade de ter alguém com quem falar, alguém que achasse bonito o piano, as escadas gigantes de mármore, os quadros extravagantes na parede de artistas que ela não conhecia, nem tinha interesse em conhecer. Colocou um tênis antigo manchado de tinta, pôs os cães na coleira e saiu para caminhar. Do outro lado da rua vivia Fabiana. Fafá, como a chamavam, decidiu abrir o vinho tinto de nome francês, se serviu de uma taça meio cheia, deixou o barulho da cidade entrar como se estivesse criando uma cena. Desceu de elevador, tirou as botas de salto alto e pisou na poça do asfalto, levantando de leve a saia e esperando com gozo os pingos de chuva. Era noite. Riu, dançou, compôs ali mesmo uma canção, sendo observada pelo porteiro do prédio com admiração, desejo e curiosidade. Nesse mesmo instante infinitas janelas pareciam ao longe pequenos pontos de luz. Clara achou um broche galês em meio à caixa de madeira comprada no antiquário. Pôs o broche na blusa amarelada do tempo e se serviu de sorvete de baunilha à meia noite. Ligou para uma amiga e marcou de passear no fim de semana por uma avenida longa com uma polaroid na mão. Chorou vendo novela. Lembrou da sacola reutilizável das compras deixada no chão da cozinha com as amoras e toranjas, que comprou mesmo achando que estavam caras demais. Foi dormir sem fome. Fernanda pôs um vestido vermelho, batom vermelho, flor vermelha na cabeça. Lembrou de um filme que tinha gostado de assistir, a personagem corria na rua com jornal na cabeça, vestido colorido em meio ao dia mais nublado do ano. Sorria com um ar de sedução por entre as prateleiras da livraria, conhecia um moço, saiam para tomar uma cerveja, jogavam sinuca, jogavam conversa fora, jogavam pela janela o pudor. Era um filme com final feliz. Já Bruna ficou até mais tarde no palco, sozinha, com a saia de tule e o collant rosa claro com um pequeno rasgo na lateral. Naquele dia perdeu o metrô. Pediu carona para a vizinha, Patrícia, que nunca negava qualquer tipo de favor. Patricia passou o dia sorrindo, sorriu para todo mundo e quando chegou em casa desabou a chorar. Um gato preto lhe espiou, e com um delicado miado lhe fez companhia. Gato preto, numa sexta-feira, mas não era 13, então está tudo bem. O gato não era dela, era da Ludmila, uma moça que pintava porcelanas delicadíssimas, ria um tanto contida, escondendo a boca com a mãos. Ludmila apaixonou-se por Pedro, homem musculoso e suado que todos os dias corria no calçadão. Ela escrevia no computador, enquanto espiava ele com o canto dos olhos e um fogaréu por dentro. Nunca chegou a olhá-lo diretamente nos olhos. Enquanto sonhava com um amor que não iria vir, ouvia a voz da sua mãe vindo do quarto ao lado. Elenice lá de dentro rezava. Rezava porque era o que conseguia fazer em meio à saudade. Sentia tanta saudade, muita mesmo, então passava a tarde com o terço e o lencinho bordado na mão, chorando, rezando, lembrando. Adalberto deixou em seu peito um tanto assim, imensurável de saudade. Às sextas-Feiras, porém, depois de rezar, lá ia ela, crochê, bolo de fubá e bule de café nas mãos, passar o tempo com outras mulheres, sentada em roda a contar histórias.
(texto escrito por Silvane Vasconcelos, em aula do Travessias Textuais)
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