Colibri na janela
(aviso de gatilho)
E de repente um colibri na minha janela. Parado. Suspenso no ar.
- Colibri...
Será possível ainda refazer caminhos depois de tanto tempo? Haverá tempo?
Colibri. Carregava esse apelido desde a infância. Já ninguém lembrava o motivo. Não havia muita gente para lembrar. Não, não se parecia com o pássaro. Talvez até o contrário. Desde menina muito séria, cuidadosa, preocupada com o bem estar de todos, com os olhares sobre si. Faltavam a ela o colorido, a leveza e a agilidade de um colibri.
Havia um peso que sempre carregava como quem adivinha a própria sorte. Mas na carne, não no sentimento. Seu pragmatismo, a seriedade com que sempre percebeu a vida, fazia transformar as dificuldades em problemas muito objetivos, resolvíveis ou não. Por ser alta e muito magra deixou disfarçar até para si mesma esse peso. A lentidão com que se movia fazia com que o que era peso soasse mistério. Para os outros e até pra ela. Em seu cotidiano não havia muito movimento. A rotina se fazia quase igual a cada dia. Uma vida estreita, sem sobras. Seca. Marcada por eventos difíceis, trágicos às vezes. Mas não havia espaço para cair, parar, doer.
Olhos negros também de mistério, tinha um semi sorriso frequente, numa expressão de Monalisa que poderia querer dizer isto ou aquilo. E a fala peculiar, um traço. Sempre difícil de chegar, precedida por um movimento de cabeça, abrindo muito os olhos, como se a voz pudesse chegar antes pelos olhos do que pela boca.
Vivia sozinha com o pai, homem correto e cumpridor de seus deveres, a ponto de rigidez. Eram só os dois. Colibri nunca perguntou o porquê, mas desde a morte da mãe, aos 3 anos, o pai a trouxe para o Rio de Janeiro, afastado da família gaúcha. As relações familiares foram mortas pela distância e pelo ódio.
Ainda aos 12 anos, já aparentemente formada de corpo, foi violentada por um parente de seu pai que se hospedou na casa vindo de outra cidade. Posso lembrar esse momento como se fosse agora. Será possível? Ainda?
A pele fina, tão clara, abrigava um corpo magro e já quase alto. Não soava frágil, mas mesmo assim a brutalidade com que o ‘primo’ a empurrou para o chão e se colocou em cima dela, logo fez surgirem manchas vermelhas por toda parte. Não teve tempo de compreender direito o que estava acontecendo. De repente uma dor muito forte (ou um susto?) provocou, inconscientemente, um grito. Um grito visceral.
[A última marca sonora de Colibri em um longo intervalo de tempo.]
Sentiu-se prestes a sufocar. Tentou se esquivar, levantar, mas já era tudo peso....
No mesmo repente... parou... ele se levantou rápido... saiu.
Ninguém lhe falava sobre coisas da sexualidade. A mãe morreu muito cedo. O pai fechado. Introvertido. Mas mesmo assim ela conseguiu intuir a gravidade do que acabara de acontecer. A porta bateu. ‘Ele saiu’, ela pensou. E foi tomada por um enjoo que dominou cada volume de seu corpo. Tentou se manter o mais imóvel possível para não tornar-se um grande vômito. Encontrou o silêncio mais fundo que havia em si.
[Esse seu silêncio fundamental a acompanharia por toda a vida. Sua voz nunca mais ousaria liberdade. A fala, antes de conseguir se colocar no mundo, passaria sempre por um processo de ruminação intenso.]
E, ouvindo a voz de sua mãe cantar pra lhe embalar,
dormiu.
[A única lembrança que tinha da mãe: a voz.]
Quando acordou estava sozinha no chão da sala. Melada de sangue e esperma. Passou tempo imóvel, ainda muda, como se pudesse fazer desacontecer o acontecido. Ficou assim até que o pai retornou. Só então, a partir do que os olhos dele contaram para os dela, ela pôde ver o que havia se passado.
O pai, de gestos econômicos, se aproximou, segurou seu rosto em silêncio. Olhou aquele corpo tão novo mas quase alto já, um corpo de mulher. Não custou muito para compreender o que tinha havido. O corpo frio, alvo, marcado, de Colibri. O sangue. Alguma desordem. E o silêncio em resposta ao chamado pelo primo:
- Luis!!!
Mas a palavra, a palavra mesma, representação do ato, chegou só quando emitida pelo pai à polícia. A completa clareza do que houvera só se fez quando viu os lábios de seu pai se moverem dizendo ao telefone:
- ela foi estuprada
Como num filme mudo, não havia som na boca de seu pai. Tudo corria em slow motion estuprada close na boca do pai estuprada a imagem dos lábios estuprada retornou muitas vezes, como que contando para o restinho de infância de Colibri o que acabara de acontecer.
O choro severo do pai.
O grito.
Silencioso. Mudo, apesar da boca tão aberta. Molhado. Saculejante.
Eterno……...
Essa foi a imagem que definiu seus tons na vida. Não o estupro apenas, mas a imagem do pai.
O choro.
O grito.
[A eternidade do grito do pai foi o evento no qual ela se apoiou para construir dali por diante o que sentir, quem ser.]
Força. Força para enfrentar as agruras da vida. Para carregar o que pesava nesse pai tão solitário, trabalhador, que se dedicou a se manter vivo pela filha sem mãe e sem mais ninguém. Ela compreendeu que ele precisava vê-la forte para que sua vida seguisse adiante.
Era azul o seu cenário. Azul escuro, muito escuro. Profundo como as notas da primeira hora do anoitecer, como ela via da janela.
…...
Só depois, tendo vivido um tanto a vida, Colibri pôde reconhecer como a vivência do estupro foi marcante. Não só no aspecto sexual, mas de seus vínculos de confiança, sua relação com os homens. E uma eterna percepção de sua vulnerabilidade, que a levou a correr bem poucos riscos. Não que chegasse a ser ousada antes.
Foi aos 18 anos que começou a experimentar o sexo consentido. Sexo com sentido. Sexo co-sentido. Nessa sua nova primeira vez, sem nada de glamour ou paixão, como costumavam ser suas coisas todas, simples e objetivas, houve também um grito. Esse, já não de susto, de dor ou medo. Também não de prazer. Foi da experiência de sentir seu corpo liberto no encontro com o outro. Um corpo realizado em par. Envolto em abraço. Pele e pele. Em liberdade.
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foi de liberdade o grito
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Estiveram por toda a tarde se experimentando. Ele era um menino. Era quente. Era forte, suave, terno, entusiasmado. Era sua primeira vez. Foi na janela, os dois olhando a paisagem, que aquele menino sem jeito segurou seus peitos como se fosse um volante que o guiaria ao paraíso. E a penetrou num movimento doce que não levou ao gozo do corpo, mas ao conforto da alma.
Depois o quarto de Colibri cheirava a sexo, cigarro e chocolate, numa mistura de adultez e infância que ficou encoberta no silêncio por trás da fumaça.
Nunca mais se viram.
O sexo onde a sensorialidade foi guia tornou-se, a partir desse dia, uma espécie de vício para Colibri, a única experiência em que o peso era subtraído pela vivência do desejo na carne. Assim foi sua vida erótica. Um pular daqui pra ali, experimentando diversas pequenas liberdades em pequenas mortes, e escapando da possibilidade de se ver amando outro homem que não seu pai. O amor entre eles era pesado, apesar de, e por ser devotado. Tinha uma representação de dever e aprisionamento que não desejava multiplicar. Por isso, e pela marca que o estupro deixou de vulnerabilidade diante de um homem, os homens tiveram em sua vida apenas um lugar de encontro sexual.
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[um dia, na noite escura de seu útero, a luz a iluminou por dentro. um ser, uma luz própria se usando de seu corpo para se construir e vir brilhar no dia]
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Muito mais tarde, depois dos 30, por um acidente, Colibri engravidou de um dos homens com quem se encontrava eventualmente. Era uma menina, Alice. Numa resolução que surpreendeu seu pai e a si mesma, decidiu ter essa filha. Só. Sem pai.
A gestação de Alice foi mais uma rara experiência de libertação do modo de ser do seu corpo. Enquanto ela esteve dentro de Colibri houve como nunca antes luz naquele corpo sombrio. Como em uma incorporação, Colibri mudou seu jeito enquanto carregava Alice. Foi, quem sabe aí, um pouco um colibri: que voa leve, alegre, luminosa. Depois do nascimento de Alice passou a viver colada na filha como um morto de sede em um copo de água.
Alice, a pequena Alice, apesar de luminosa, não teve muita chance de voar por conta da obstinação de sua mãe em cuidar. Não conheceu nenhum companheiro, companheira ou amiga de sua mãe. Viviam as duas e só. Assim foi sua vida, como a da pequena Colibri, enxuta, vigiada, apoio de um adulto vazio, sem nada.
Até o dia do acidente, quando Alice voou definitivamente num enorme grito...
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[O grito não é sempre som. Às vezes chega como imagem. Às vezes não se sabe se foi som ou imagem. O corpo fêmea no movimento entre ajoelhada e quadrúpede, no quase tombo. Que não tomba porque uiva. O grito que sustenta. A contração profunda da existência e da dor de existir. O grito no músculo, na carne. Não na voz.
A imagem. Sem som. Filme mudo. A mulher. A dor. A vontade de parir.]
Nua
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E de repente um colibri na minha janela. Parado. Suspenso no ar.
É você, Colibri? Hoje….
Nesse derradeiro dia te reencontro. E te reconto.
Essa mulher que já não sou eu, em quem já não me reconheço, hoje, justo hoje, se insinua em minha janela. Será que ainda está aqui, Colibri? Nesse corpo velho, com tantas décadas a contar, com a pele frouxa como um lençol de muito uso que se solta do colchão. E o cheiro. Esse cheiro. De velhice, de morte. Me olhando no espelho reencontro a expressão de medo e fundo que marcou você até aquele dia. Até o dia do acidente. Até a notícia de que Alice
- não resistiu
Não resistiu. As palavras proferidas pela enfermeira, ainda no CTI do hospital onde me recuperava dos 4 dias de coma depois do acidente, do voo do carro no lago.
- onde está Alice?!
ainda perguntei
não resistiu
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[não tem mais uma filha]
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Como no dia do estupro, foi revivido o filme mudo, o close nos lábios, na repetição do movimento dos lábios, como se pudesse redesenhar a notícia lendo outras palavras.
não resistiu!,
não resistiu?,
não resistiu...
como quem busca compreender o significado de uma sentença simples como essa. A repetição só parou quando chegou, dessa vez em mim mesma, o choro mudo, dilacerante,
o grito
mudo
eterno,
do pai.
Aquele choro teve força de nos partir em duas: eu, Marina,
……...
e Colibri, quem eu tinha sido até aquele instante.
O acidente, a morte de Alice aos 9 anos, cortou o fio da vida de Colibri. Decidi calar seu apelido para sempre. Tatuei o colibri no peito na vontade de deixar o corpo, a vida, serem permeados pela leveza e graça do pássaro. E seguir. Mas, afinal, tudo foi apenas fantasia.
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Me dedico a essas reflexões já não exatamente viva, sentindo o coração escorrer como que dissolvido no próprio sangue, olhando a pele solta do peito, onde se vê o que um dia foi a tatuagem do colibri que desejei ser, mas não pude.
As palavras escritas agora no caderno me soam mais reais que a própria vida.
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Depois da morte de Alice vem um longo período de esquecimento profundo. Me levaram pro campo, num sítio onde havia retiros de meditação e grupos de mobilização de ajuda a famílias carentes. Vivi por anos ali numa rotina de interno de campo de concentração, segundo relatos. Por opção. Era pele e osso. Trabalho com a terra. Comida e sono necessários para a sobrevivência.
A chegada de três crianças que haviam perdido os parentes num crime de ódio foi o início de um desvio da pura sobrevivência. A pulsação da dor nelas operou como um coração fora de mim. Marcou outro compasso. Fui cuidar. Cuidar como nunca havia cuidado. Procurando as reais necessidades daquelas três crianças. Me deixei escoar. Doei. Desse modo o peso tornou-se possível.
O resto seguiu no fluxo prático da vida. Depois de criadas aquelas crianças retornei ao Rio, onde meu pai definhava sozinho, velho e doente. Não demorou muito sua morte. Felizmente. Um homem amargurado, sofrido, roubado de sua dignidade de homem pelo estupro da filha pelo próprio primo e a decrepitude do corpo na velhice. Poder sentir sua solidão, essência humana, e pousar dentro dela, teve certo aspecto de liberdade, pois decidi, ali, não me deixar viver fim semelhante ao dele.
E hoje termina minha saga. Ainda lúcida, capaz de escolher a liberdade.
Foi bom escrever. Inventar quem fui.
Lá vou eu, firmamento, te encontrar daqui desta janela.
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A janela. Um riso. O grito. O voo.
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O voo,
enfim…
(Conto escrito pela aluna Flavia Bali, para aula do Travessias Textuais)
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