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Sofia Amorim

Água na escrita ~ ou esclarecendo textos

Não, não caiu água em cima dos meus cadernos. Mas, se caísse, o que aconteceria?

Alguns textos parecem estar sedentos, pedem para que coloquemos neles um pouco de água, deixando-os mais suaves. Não são todos, claro. É preciso um certo cuidado ao mexer com água perto das escritas, assim como com o fogo.


Temos nos deparado com tantos textos “tweets”, curtinhos, pesados – às vezes, sinto falta das ideias mais clareadas, com espaços e respiros entre elas. Colocar água no texto é também deixar as intensidades suavizadas, para que a gente possa saboreá-las com mais tempo, com menos fúria, menos fome. Um texto riachinho?


A água tem essa capacidade incrível de soltar o que está colado demais, denso. A gente deixa ali, de molho, um pouquinho e tudo se dissolve, limpa, fica mais fácil de se lidar. Texto mergulhado em bacia? Como fazer isso com o texto?


Pode ser que os parágrafos se alonguem um pouco mais. Pode ser que a gente tenha que ir um pouco além do que se tinha planejado. Estou aqui, nesse instante, experimentando modos de deixar esse texto mais suave, mais aguado. Talvez, eu conseguisse dizer tudo isso em dois parágrafos. No entanto, em tempos como os atuais, água pode ser refrescante. Escrita lagoa?


Pode ser que os versos se estendam, escorram pelas linhas, caindo pelos cantos, como nos deliciosos poemas de Manoel de Barros – aliás, um poeta cheio de água em suas escritas. Talvez os versos, ao invés de conter toda a verdade condensada em algumas sílabas, se deixem levar pelas inúmeras imagens surgidas com a possibilidade de mais e mais água. Versos-rios?


Por aqui, no Travessias, uma das aulas é justamente sobre essa relação, aparentemente surpreendente, entre a água e a poesia. Quem nos traz as imagens, quem nos ajuda a pensar mais sobre isso, é Gaston Bachelard e seu belíssimo “A água e os sonhos” – já falei dele em alguns lugares dessa rede. Trago um trecho para cá, em que ele explica a força que as águas têm em nossos textos (e em nós):


“Por falta dessa desobjetivação dos objetos, por falta dessa deformação das formas que nos permite ver a matéria sob o objeto, o mundo se dispersa em coisas díspares, em sólidos imóveis e inertes, em objetos estranhos a nós mesmos. A água, agrupando as imagens, dissolvendo as substâncias, ajuda a imaginação em sua tarefa de desobjetivação, em sua tarefa de assimilação. Proporciona também um tipo de sintaxe, uma ligação contínua das imagens, um suave movimento das imagens que libera o devaneio preso aos objetos.” (p. 13)

Para Bachelard, “as imagens poéticas têm, também elas, uma matéria” (p. 3), sendo essa matéria a água.


Esclarecer um texto é enriquecê-lo com as infinitas possibilidades de uma rega – no sentido de regar uma planta mesmo. Ao trazer as imagens poéticas, ao dar espaço, cuidado, umidade, o texto brota e se torna claro.


É preciso, no entanto, um cuidado. Há textos, há lugares, há seres que, caso imersos na água, caso a água venha em excesso, morrem. Como não matar a escrita com o excesso de água? Por vezes, basta enxugá-la, mas isso é assunto para textos futuros.

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