Uma breve história da língua e da escrita
Texto por Sofia Amorim

Parte I – A origem da linguagem humana
Nem sempre, mas, vez ou outra, me pego fascinada pelas línguas – às vezes, enquanto alguém fala, articulando distraidamente palavras e ideias; outras, enquanto eu escrevo, colocando letra após letra em um papel, fazendo do que antes era somente pensamento algo material. Nesses momentos, costumo pensar na história de como os seres humanos desenvolveram a linguagem e a escrita na base de suas sociedades. Gosto muito do livro O mundo da escrita, de Martin Puchner, no qual ele vai mostrando como essa coleção de “desenhos” foi transformando profundamente a sociedade. Resolvi, então, inspirada nesse e em outros autores, escrever uma “breve história da língua e da escrita” para mostrar aos meus alunos como se deu – e ainda se dá – esse acontecimento tão fundante da humanidade.
"a linguagem é a casa do ser"
Heidegger
A maior parte de nós sabe – ou pode supor – que a linguagem antecede a escrita em dezenas de milênios. Por ser um traço tão constitutivo da espécie humana, alguns pesquisadores (mesmo que controversos), como Steven Pinker, chegam a descrevê-la como um “instinto”: algo que se desenvolve naturalmente em qualquer criança exposta ao convívio social. Outros, como Noam Chomsky, defendem a ideia de uma “faculdade da linguagem”, inscrita na mente humana como possibilidade biológica. Apesar das divergências teóricas, parece haver um certo consenso: não há sociedade humana conhecida sem linguagem. Falar é tão universal quanto a própria condição de ser humano.
Dar-se conta disso parece ampliar a admiração pelo mundo e só essa ideia muito material nos daria para filosofarmos. Me lembro de Giorgio Agamben, em A aventura, em que diz que não há diferença entre o cavaleiro – que vive a experiência – e o poeta – que a relata: uma e outra, aventura e narrativa, são a mesma coisa, sendo impossível separá-las. Assim como ser humano e a linguagem.
Em algumas mitologias de origem, é a palavra que funda o mundo, como, por exemplo, na cristã. “No princípio, era o verbo”, ali, Deus diz “Faça-se Luz” e o mundo vai surgindo. Em outras, como no hinduísmo ou em algumas religiões de povos indígenas, o ato de nomear é o mesmo para criar tudo o que conhecemos. Mito ou história, fato é que o homo sapiens surge junto com a capacidade de falar.
As origens dessa faculdade são, em grande parte, inacessíveis a nós – considerada pelos cientistas, inclusive, um complexo problema sem resposta definitiva. O surgimento da linguagem não deixou fósseis diretos; o que temos são indícios arqueológicos, comparações com outros primatas e hipóteses sobre a evolução do cérebro. Alguns estudiosos apontam para a importância do osso hióide, presente em fósseis de Homo sapiens e também de neandertais, como peça anatômica que teria permitido a articulação de sons complexos. Outros destacam o crescimento do neocórtex e do área de Broca, vinculados ao processamento linguístico. Essas teorias sobre o surgimento da linguagem nos mostram uma possível associação entre o surgimento da fala e o da espécie humana.
Mesmo destacando essas faculdades humanas, sabemos que os animais também possuem comunicação própria – então, o que muda? Na verdade, a linguagem humana possui uma diferença profunda dos sistemas de comunicação animal. Sabemos, por exemplo, que as abelhas podem indicar a localização de flores por meio de danças, ou que os macacos vervet emitem gritos específicos para predadores diferentes, entretanto, essas formas de comunicação são limitadas e rígidas. Quer dizer, as espécies animais podem, sim, possuir um complexo sistema comunicativo, mas eles estão sempre circunscritos a certas situações, não sendo possível aos animais criar nada além do contexto no qual estão inseridos. Já a língua humana, ao contrário, é produtiva e recursiva: permite gerar frases inéditas a partir de um número finito de palavras e regras. Esse caráter criativo é o que possibilita narrar, imaginar, mentir, recordar – em suma, construir mundos – e é o que difere nossa linguagem da dos animais.
Nesse ponto – na possibilidade de construir mundo –, a linguagem liga-se ao social. Robin Dunbar, antropólogo britânico, sugere que a fala teria substituído o “grooming” (o ato de catar piolhos) como forma de manter a coesão de grupos cada vez maiores. Em vez de cuidar de um indivíduo por vez, a fala permite a relação com muitos ao mesmo tempo, ampliando a rede social – o autor, inclusive, brinca e pesquisa sobre o ato da fofoca. Já para Terrence Deacon, a linguagem teria surgido em meio a pressões simbólicas e a rituais, na necessidade de marcar alianças e vínculos dentro de clãs.
Não há, portanto, uma única teoria definitiva. O que emerge é a ideia de que a linguagem é inseparável da condição humana: ela não apenas descreve o mundo, mas o constitui, o que quer dizer que, para nós, humanos, a existência do mundo é através da linguagem. Podemos nos aproximar de Heidegger, o qual diz que “a linguagem é a casa do ser” e cada língua organiza de modo singular a experiência da realidade.
Parte II – Das primeiras marcas gráficas às escritas formais
Se a fala é tão antiga quanto o próprio humano, já a escrita é uma invenção relativamente recente na história. Para se ter uma ideia, estima-se que a humanidade tenha surgido cerca de 200 mil anos atrás, mas a escrita só há 5, 4 mil anos. Quer dizer, durante 195 mil anos, a humanidade viveu apenas da oralidade: mitos, leis, genealogias e histórias eram transmitidos de boca em boca, sustentados pela memória e pela repetição ritual. Walter Ong, estudioso da oralidade, mostrou como esse mundo sem escrita dependia de fórmulas fixas, de ritmos e paralelismos para garantir que o conhecimento não se perdesse. A oralidade, nesse sentido, não era ausência, como se poderia pensar por não haver a escrita, mas organizou de tal modo que pouco se perdia.

Antes da escrita propriamente dita, já havia marcas gráficas. Nas cavernas de Lascaux e Chauvet, na França, encontramos pinturas rupestres com mais de 30 mil anos: bisões, cavalos, figuras humanas estilizadas. Não eram ainda “palavras”, mas signos que organizavam narrativas visuais. Em locais como Blombos, na África do Sul, foram descobertos ossos e pedras com gravações geométricas datadas de cerca de 70 mil anos, sugerindo que a humanidade já experimentava uma pulsão simbólica de registrar.
A escrita, no sentido estrito, surge apenas por volta de 3.200 a.C., na Mesopotâmia. O que motivou sua criação foi uma necessidade muito prática: registrar transações comerciais, estoques, impostos. Os primeiros sinais cuneiformes eram pictogramas – desenhos de cabeças de gado, medidas de cevada, jarros de óleo. Com o tempo, esses sinais foram se tornando mais abstratos, reduzidos a combinações de cunhas impressas em argila.
Quase simultaneamente, no Egito, desenvolveu-se o sistema hieroglífico, também a partir de pictogramas, mas com uma dimensão estética e religiosa muito mais acentuada. O que, para os sumérios era cálculo e contabilidade, para os egípcios, era culto, mito, eternização da vida após a morte.
Na China, por volta de 1.200 a.C., encontramos inscrições em ossos oraculares (osso de boi, casco de tartaruga), usadas em práticas divinatórias. Esses sinais dariam origem à longa tradição dos caracteres chineses, um sistema morphossilábico onde a maioria dos caracteres combina elementos de significado (radicais) com elementos que dão pistas sobre a pronúncia. Do outro lado do Atlântico, as civilizações maia e asteca também desenvolveram sistemas complexos de escrita, com sinais que misturavam imagens e fonemas.
É importante destacar que essas primeiras escritas não surgiram para “substituir” a oralidade, mas para complementá-la. Não pretendo fazer aqui um juízo de valor que contraponha oralidade versus escrita. Mesmo porque, até hoje, a escrita continua sendo também um complemento à oralidade, ainda que tenha ganho uma importância enorme em nossa sociedade. Lembrar-se disso nos ajuda a valorizar cultura que se apoia, ainda hoje, na oralidade e que muito contribui com a humanidade.
No entanto, é preciso destacar que durante séculos, apenas uma elite restrita – escribas, sacerdotes, burocratas – dominava os sinais. A imensa maioria da população continuava imersa no mundo oral. Jack Goody, em A domesticação da mente selvagem, mostra como a escrita mudou radicalmente a forma de organizar o conhecimento, pois permitiu, por exemplo, listas, tabelas, leis codificadas, genealogias extensas. Tal sofisticação teve um preço: criou-se uma distância entre quem escrevia e quem apenas falava e não lia.
Mesmo nas sociedades que a usavam para contabilidade, a escrita rapidamente se ligou ao sagrado. As tábuas de argila eram depositadas em templos; os hieróglifos cobriam tumbas e monumentos; os caracteres chineses eram invocados em rituais. Escrever tornou-se mais do que registrar, na escrita, convocavam-se forças invisíveis, fixava-se o transitório, garantindo permanência diante do tempo, deixando para nós, como um presente, uma parte da nossa história.
Parte III – Alfabetos e fonetização da escrita
Essa primeira escrita ainda estava muito distante da que nos utilizamos hoje. Se os primeiros sistemas de escrita eram pictográficos (representações visuais que transmitem informações sem palavras), evoluindo para logográficos (onde signos representam palavras ou morfemas), uma grande revolução intermediária foi a criação de sistemas silábicos, nos quais os signos passaram a representar sons. A revolução aconteceu mesmo com a invenção do alfabeto fonético, em um passo decisivo: reduzir o universo infinito das palavras a um conjunto limitado de sinais, cada um representando um fonema (um som da fala).
Por volta do segundo milênio a.C., os fenícios, povo mercante e marítimo do Mediterrâneo, desenvolveram um sistema que representava apenas as consoantes. Esse alfabeto de cerca de 22 sinais era prático, portátil e fácil de aprender em comparação aos hieróglifos ou ao sistema cuneiforme. Sua difusão foi facilitada pelo comércio: marinheiros, comerciantes e diplomatas levavam os sinais de porto em porto. Esse alfabeto ainda não era “universal”, quer dizer, quem lia precisava “adivinhar” as vogais a partir do contexto oral. Ainda assim, já representava uma simplificação radical, tornando a escrita menos dependente de especialistas. Isso me remete ao processo da alfabetização infantil, onde se evolui de rabiscos para a escrita convencional.
Os gregos, por volta do século VIII a.C., deram o passo seguinte: adaptaram o alfabeto fenício e, de forma crucial, adicionaram sinais específicos para as vogais. Essa inovação foi um divisor de águas, já que ao representar os sons vocálicos, o alfabeto grego permitiu uma transcrição mais fiel da musicalidade e da complexidade da fala. Isso não significa que a poesia, a filosofia ou o teatro não existissem antes, mas que dependiam majoritariamente da tradição oral. As grandes epopeias, como a Ilíada e a Odisseia, e as ideias filosóficas eram transmitidas de geração em geração através da memorização, da recitação e do diálogo. O teatro, por sua vez, sempre foi uma forma de arte performática. Com o novo alfabeto, tornou-se possível registrar essas formas de arte com precisão. O que antes era transmitido pela memória e pela voz, pôde ser fixado em um texto, o que permitiu não apenas a preservação e a circulação dessas obras, mas também um novo nível de sofisticação e detalhamento no pensamento e na criação literária.
O alfabeto grego foi primeiro adaptado pelos etruscos na Itália e, a partir daí, transformado pelos romanos no latino, sendo a base do sistema que usamos até hoje em grande parte do Ocidente. Outras adaptações também foram se espalhando pelo mundo: o alfabeto cirílico, no mundo eslavo; o árabe, com sua caligrafia sagrada; o hebraico, ligado ao texto bíblico.
Para Eric Havelock, em Prefácio a Platão, na Grécia antiga, a passagem da oralidade para o alfabeto transformou profundamente a mente daquele povo. Se, na tradição oral, o conhecimento estava preso a fórmulas e ritmos, com o alfabeto, surge a possibilidade da análise abstrata, do pensamento lógico e da própria filosofia (no modo como o Ocidente a concebe). Talvez, seja por esse motivo que Platão, por exemplo, na busca pela verdade, desconfiava dos poetas e propunha a supremacia da razão escrita.
Outro autor que reforça essa ideia é Walter Ong. Para ele, a escrita alfabética permite distanciar-se da palavra falada, fixando-a e, por isso, sendo possível voltar a ela, o que favorece a reflexão, a crítica, o surgimento de ciências e de sistemas jurídicos mais estáveis. Ao mesmo tempo, a escrita gerava nostalgia e desconfiança: muitos gregos, como Sócrates, viam na escrita uma ameaça à memória viva e à presença da palavra.
Mesmo com o surgimento desse alfabeto aparentemente mais simples, sua adoção não foi mundial, havendo, de lá até hoje, uma diversidade. Enquanto gregos e romanos difundiam seu modelo, os chineses preservavam seu sistema logossilábico; no Egito, a antiga tradição dos hieróglifos foi, paradoxalmente, substituída pelo alfabeto copta; e na Mesoamérica, os maias continuavam a compor seus códices com um sistema complexo e independente. A história da escrita não é exatamente linear ou única, ela está mais para uma tapeçaria de formas diversas, coexistindo e disputando espaços.
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Parte IV – Expansão da escrita no medievo e na modernidade
Com a consolidação dos alfabetos e a multiplicação de sistemas escritos, a história da escrita entra numa fase marcada pela transformação dos suportes e pela ampliação do público leitor. O que era privilégio de escribas e elites começou a circular em novos formatos, ainda que de forma desigual. Para Martin Puchner, a invenção da escrita foi algo que mudou a história da humanidade, mas essa mudança radical continuou acontecendo junto às outras invenções relacionadas à escrita: uma delas é justamente, a transformação desses suportes (onde se escrevia), os quais passaram a permitir que não se restringisse tão somente a uma parcela pequena da sociedade.
No mundo greco-romano, o rolo de papiro era o suporte principal. Para ler, era necessário desenrolar e enrolar, em gestos sequenciais. Entretanto, já nos primeiros séculos da era cristã, um novo formato se impôs: o códice, folhas dobradas e costuradas, semelhantes ao livro atual. O códice oferecia vantagens evidentes, como o acesso rápido a qualquer página, a possibilidade de escrever nos dois lados e uma maior portabilidade. Tanto que a sua adoção foi decisiva para a difusão dos textos cristãos: padres e monges podiam transportar evangelhos, copiá-los, compará-los. Sua materialidade favoreceu a circulação de ideias e a constituição de uma comunidade letrada que se reconhecia no mesmo objeto.
Na Idade Média europeia, os mosteiros tornaram-se centros de preservação da escrita. Em scriptoria silenciosos (local onde se faziam as cópias dos livros), monges copiavam manuscritos à mão, muitas vezes iluminados com miniaturas e letras ornamentadas. Cada cópia podia levar meses ou anos. O que poderia parecer apenas reprodução, na verdade, também era um tipo de recriação estética, pois esse trabalho também tinha uma dimensão espiritual. O ato de copiar também era um ato de rezar, seu gesto manual ligava a palavra à fé e o livro tornava-se objeto sagrado. Ao mesmo tempo, a lentidão e o custo tornavam os livros raríssimos: bibliotecas monásticas contavam dezenas, não milhares, de volumes.
O pergaminho, feito de pele de animal (estima-se que, para uma única Bíblia, eram necessários de 200 a 300 animais), tornou-se o suporte dominante em grande parte da Europa medieval, com o declínio do fornecimento de papiro. Apesar de mais durável, o pergaminho dava origem a livros robustos, mas extremamente caros, pois cada exemplar poderia exigir o sacrifício de rebanhos inteiros. A introdução do papel, vindo da China e difundido pelo mundo islâmico até chegar à Europa no século XIII, foi uma revolução silenciosa: por ser mais barato, mais acessível e mais propício à escrita rápida, ele, gradualmente, tornou-se o suporte preferencial para o uso cotidiano.
O verdadeiro divisor de águas foi, no entanto, a imprensa de tipos móveis, criada por Johannes Gutenberg por volta de 1450, em Mainz, na Alemanha. Na verdade, o inventor alemão inspirou-se no que já estava acontecendo no leste asiático, onde os chineses criaram tipos móveis para seus caracteres. Pela primeira vez, tornou-se possível reproduzir centenas de cópias idênticas em pouco tempo. A Bíblia de Gutenberg inaugurou uma nova era, deixando os livros de ser peças únicas para se tornar multiplicáveis.
Essa inovação coincidiu com a efervescência do Renascimento e da Reforma Protestante. Martinho Lutero, por exemplo, pôde difundir suas teses em milhares de exemplares, desafiando a Igreja Católica. Assim como o surgimento de um alfabeto permitiu o desenvolvimento de um aspecto do pensamento humano, a invenção da imprensa democratizou o acesso, multiplicou vozes, acelerou o debate intelectual.
Se, na Idade Média, apenas clérigos e nobres tinham acesso aos livros, a modernidade trouxe uma lenta, mas constante, ampliação do público leitor. Escolas, universidades, cidades comerciais criaram novas demandas de leitura e escrita. Panfletos, jornais, almanaques começaram a circular. A escrita, que nascera como tecnologia de elites, tornava-se cada vez mais parte do cotidiano.
Nada disso significou a morte da oralidade. Sermões, canções, narrativas populares continuaram a ser constituintes da vida cotidiana. Em vez disso, a partir da imprensa, a relação entre oral e escrito mudou, pois a oralidade passou a ser atravessada pela escrita impressa. O pregador lia sermões impressos, o cantor popular se inspirava em folhetos. A cultura, para Roger Chartier, se constitui na interação contínua entre as práticas da voz e da letra. Agora, uma parcela da sociedade girava em torno do livro.
Parte V – Escrita e língua como poder
É importante lembrar que a escrita, desde sua invenção, nunca foi apenas um meio neutro de registrar informações: ela foi, e continua sendo por esses cinco mil anos, uma tecnologia de poder. Quem domina a escrita tem acesso a posições privilegiadas: controla memória, estabelece leis, fixa narrativas, exclui vozes. A história da escrita é, portanto, também a história de sua apropriação política e social.
Nas sociedades antigas, apenas uma elite restrita era alfabetizada. Os escribas mesopotâmicos, os sacerdotes egípcios, os letrados chineses constituíam castas especializadas. A escrita, ao mesmo tempo em que ampliava as possibilidades cognitivas, erguia muros sociais já que saber escrever era deter um segredo. Diferente do nosso imaginário popular, nem todo rei, nem todo imperador, por exemplo, sabia ler – pelo contrário, muito deles contratavam quem soubesse. Na Antiguidade e mesmo na Idade Média, a habilidade de ler e escrever não era considerada uma necessidade para a realeza, cujo poder era garantido pelo nascimento, pela força militar e pela capacidade de governar, não pelo letramento. A realeza dependia de escribas e conselheiros letrados para a administração e a comunicação.
Essa assimetria não desapareceu com a imprensa. Mesmo na Europa moderna, as taxas de alfabetização permaneceram baixas por séculos. Hoje sabemos que, durante as Cruzadas, as mulheres da elite eram mais cultas que os homens, os quais estavam envolvidos com as guerras. Um outro dado acerca da popularização da alfabetização está relacionada ao protestantismo, o qual trazia como recomendação que todos os fiéis lessem a Bíblia, fazendo com que países protestantes tivessem uma taxa menor de analfabetismo que os católicos. Em muitos lugares, somente no século XIX é que a leitura básica se universalizou. Até então, livros e jornais eram lidos em voz alta por poucos, para muitos.
Na expansão europeia pelo mundo, pode-se dizer que a escrita foi uma das principais armas simbólicas da colonização. Nos diversos lugares por onde se instalaram, missionários traduziram línguas indígenas para alfabetos latinos, impondo novas formas de registro. Os documentos escritos legitimaram a posse de terras, o estabelecimento de fronteiras, o controle sobre populações que viviam de tradição oral. Para Darcy Ribeiro, a alfabetização foi a mais eficaz das armas de colonização, pensamento tal que sintetiza essa dinâmica: o colonizador escrevia o que devia ser lembrado; o colonizado, muitas vezes, via sua memória oral sendo deslegitimada, considerada “inferior”.
A escrita também cristalizou hierarquias linguísticas: o que era falado em certas regiões ganhou prestígio por ser fixado nos textos oficiais. O latim, por exemplo, tornou-se língua da Igreja e do saber europeu. No Brasil, o português escrito, normatizado pela gramática, foi, e ainda é, usado para desqualificar a fala popular, as línguas indígenas e as africanas.
Para Michel Foucault, não há discursos inocentes: todo regime de verdade se sustenta em formas de exclusão, quer dizer, o que se considera correto, verdadeiro, em vista do que não o é. A escrita faz parte desse regime ao escolher o que registrar, decidindo o que merece existir, o que será lembrado e o que poderá circular. Por exemplo, ao escrever a história dos "loucos", dos "criminosos" ou dos "desviantes", a sociedade cria uma verdade sobre eles que, por si só, exclui e silencia suas próprias vozes, seus discursos orais e suas experiências.
Se, por um lado, a escrita pode ser ferramenta de controle, ela também, por outro, foi apropriada como ferramenta de resistência. Os povos escravizados no Brasil aprenderam a escrever às escondidas para trocar mensagens, falsificar cartas de alforria, planejar fugas. Mulheres, durante séculos excluídas das universidades, criaram diários e cartas como formas de autoafirmação. Povos indígenas e africanos, mesmo submetidos à escrita do colonizador, reinventaram-na para guardar memórias próprias, traduzindo saberes orais em novos registros.
Alberto Manguel, em História da leitura, traz a ideia de que cada ato de leitura é também um ato de liberdade: o leitor reinterpreta, desvia, recria. Do mesmo modo, cada ato de escrita pode ser uma fissura no poder, uma tentativa de inscrever o próprio corpo e a própria voz na memória do mundo, algo que também nos ensina Conceição Evaristo, ao falar da escrivivência.
Por isso, a luta pela alfabetização sempre esteve ligada a projetos de emancipação. Da Reforma Protestante à Revolução Francesa, da pedagogia de Paulo Freire aos programas contemporâneos de educação popular, aprender a ler e escrever significa mais do que adquirir uma habilidade: significa conquistar acesso ao espaço público, disputar narrativas, afirmar-se sujeito, principalmente para ser capaz de questionar os regimes de verdade impostos.
Parte VI – Mundo contemporâneo: escrita digital e novos modos de ler e escrever
Se a imprensa revolucionou a circulação dos textos na modernidade, a transição para o mundo digital, nas últimas décadas do século XX e na primeiras do XXI, inaugurou uma transformação talvez ainda mais radical. A escrita saiu do papel para a tela e a leitura deixou de ser apenas linear, tornando-se também hipertextual, fragmentada, interativa.
A máquina de escrever, já no século XIX, havia mudado a relação com a palavra. Mas foi a popularização do computador pessoal com processador de texto, a partir dos anos 1990, que alterou de vez o gesto de escrever. O teclado, a tela e o software substituíram o papel em branco pela tela iluminada, onde as palavras podiam ser escritas, apagadas, rearranjadas em tempo real. A escrita tornou-se mais plástica, maleável, menos definitiva, assim como havia sido até aquele momento.
Com a popularização da internet nos anos 1990, o texto passou a circular em redes globais. Surgiram os primeiros e-mails, blogs, fóruns. Pela primeira vez na história, milhões de pessoas podiam publicar seus escritos sem depender de editoras ou tipografias. A barreira entre autor e leitor começou a se desfazer, desmitificando o papel do escritor e permitindo que qualquer pessoa também possa ser escritora.
Os efeitos dessa democratização foram ambíguos. Por um lado, deu voz a quem nunca teria espaço no impresso, não só pelo custo alto das impressões, mas, principalmente, porque a decisão de quem seria ou não impresso estava nas mãos de uma pequena elite. Por outro, gerou excesso, dispersão, dificuldade em discernir entre informação confiável e desinformação. Talvez, justamente, por não haver a figura de alguém que edite esse conteúdo, verificando suas fontes, a internet também abriu espaço para quem escreve sem um compromisso com quem o lê.
Independentemente desses lados, uma coisa é certa: nunca na história da humanidade tantas pessoas tiveram acesso a tanta informação. Curiosamente, essa sensação de sobrecarga não é nova: já no século XV, após a invenção da prensa, um padre queixava-se de que era impossível ler todos os livros existentes em uma única vida.
Se a leitura e a escrita hoje são acessíveis à maior parte da população, é preciso também destacar algumas outras diferenças entre o que foram há cem anos e o que são agora. Diferentemente dos livros impressos, a escrita digital é marcada pelo hipertexto: links conectam páginas, textos se expandem em rede. A leitura linear do códice e do livro impresso foi substituída, em muitos casos, por uma leitura saltada, descontínua, o leitor já não percorre uma narrativa do início ao fim, mas navega, escolhe caminhos, interage, de modo totalmente diferente de como era antes.
Esse ineditismo na escrita e na leitura vem produzindo novas formas de subjetividade, quer dizer, o modo como cada ser humano pensa, sente e age é totalmente diferente das gerações que não viveram essa relação. O leitor contemporâneo é também navegador, curador, produtor de conteúdo. A leitura silenciosa e concentrada convive com a leitura rápida, dissipada em múltiplas abas, em telas de celulares e em computadores.
Não só a leitura mudou, com a explosão das redes sociais, escrever tornou-se prática cotidiana de bilhões de pessoas. Tweets, posts, comentários, mensagens instantâneas configuram uma nova esfera de sociabilidade, onde a escrita é breve, veloz, atravessada por imagens e emojis. É uma escrita conversacional, a qual mistura oralidade e textualidade em um espaço híbrido.
Para muitos, isso representou um empobrecimento da escrita; para outros, um alargamento das possibilidades expressivas. O certo é que nunca tantos escreveram tanto, ainda que de modos diferentes dos que a tradição literária consagrava.
No meio disso tudo, o livro impresso não desapareceu. Ao contrário, continua sendo um suporte valorizado, especialmente para leituras longas e densas. A coexistência entre o impresso e o digital mostra que as formas não se substituem simplesmente; elas se sobrepõem, dialogam, disputam espaços. Os livros continuam a ser publicados justamente também, porque, agora, há mais espaço para que muito mais gente que os escreva e os publique. A cada ano, o número de publicações continua subindo, mesmo com (ou, talvez, até por causa de) a internet.
Martin Puchner, em O mundo da escrita, é bem claro: cada inovação tecnológica não apaga a anterior, mas a reinscreve em outro contexto. Assim como o códice não eliminou o rolo e a imprensa não eliminou o manuscrito, o digital não eliminou o livro.
A novidade, no entanto, é que a escrita contemporânea se dá cada vez mais em diálogo com algoritmos. Textos são sugeridos, priorizados ou ocultados por sistemas de recomendação. O que escrevemos nas redes é filtrado, arquivado, analisado por inteligências artificiais, as quais são programadas por aqueles que comandam as big techs. A escrita, que nasceu como gesto humano singular, tornou-se também dado, matéria-prima de sistemas globais de informação.
Essa mudança recoloca antigas questões: quem controla a memória? Quem decide o que circula? Quem tem acesso às ferramentas? A história da escrita, mais uma vez, se mostra inseparável da história do poder.
Parte VII – O que permanece, o que muda, língua, escrita e humanidade
Percorrer a história da língua e da escrita é atravessar não apenas uma linha do tempo, mas também um conjunto de tensões nunca resolvidas por completo. Desde as primeiras palavras murmuradas em torno do fogo até as mensagens enviadas em segundos por aplicativos, a linguagem se mantém como o que nos constitui e, ao mesmo tempo, se reinventa em cada época.
Se a fala nasceu com a própria humanidade, é porque a linguagem é inseparável do viver em comum; não há sociedade sem palavras, assim como não há palavras sem sociedade. O que muda são as formas: idiomas se transformam, dialetos surgem e desaparecem, novas gírias florescem a cada geração. Entretanto, a estrutura fundamental permanece: uma capacidade infinita de gerar sentido a partir de sons articulados.
A escrita, ao contrário, não é universal nem inevitável. É uma invenção técnica, uma camada suplementar sobre a língua falada. Essa camada mudou radicalmente o curso da história: permitiu leis codificadas, narrativas longas, ciências, religiões baseadas livro, memórias duráveis. Permitindo a acumulação de conhecimento, a escrita ampliou a escala da experiência humana, transportando ideias no tempo e no espaço.
Apesar de todas as transformações materiais – argila, papiro, pergaminho, papel, tela –, certos elementos permanecem. Escrever é sempre um gesto de inscrição, um esforço contra o esquecimento. Ler é sempre um ato de interpretação, em que o leitor se encontra com a voz de outro. Em cada época, esse encontro toma formas distintas, com uma essência a se repetir: a linguagem como vínculo e como disputa.
Ao mesmo tempo, as mudanças são profundas. O alfabeto simplificou e universalizou a escrita; a imprensa multiplicou leitores e autores; o digital dissolveu fronteiras entre escrita e oralidade. Cada virada tecnológica reconfigura o que significa ser humano em comunidade. E cada inovação abre perguntas éticas e políticas: quem pode escrever, quem pode ler, quem controla o acesso?
Talvez o traço mais constante seja justamente a relação da escrita com o poder. Da casta dos escribas às big techs que controlam plataformas digitais, escrever e ler nunca foram atividades neutras. São gestos atravessados por regimes de exclusão e inclusão, ao mesmo, também são gestos de resistência, invenção e liberdade. Escrita e leitura podem consolidar hierarquias, mas podem também abri-las, fissurá-las, reinventá-las.
Ao final desse percurso, talvez possamos concordar com o pensamento de George Steiner que acreditava ser a leitura uma característica fundamental e definidora da condição humana (assim como vimos sobre a linguagem). Ou com Alberto Manguel que nos diz como “toda biblioteca é autobiográfica”: o que lemos e escrevemos nos constitui.
O que permanece, então, é a centralidade da palavra – falada ou escrita – como forma de estar no mundo. O que muda são as tecnologias, os suportes, os modos de acesso. Entre permanência e mutação, a língua e a escrita continuam sendo nossa forma mais radical de criar mundos, de resistir ao silêncio, de deixar rastros para quem vier depois.


