Nascida em um museu: ensaio sobre memória, afeto e educação
Texto por Sofia Amorim, apresentado à disciplina Educação em Espaços Não Formais em 2021

O narrador retira o que ele conta da experiência: de sua própria ou da relatada por outros. E incorpora, por sua vez, as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.
Walter Benjamin, 2012 p. 217
Um recorte. Uma perspectiva. Um relato. Uma narrativa. Pensar o museu a partir de alguém nascida dentro dele. Não o olhar externo sobre um outro sujeito. Uma narrativa pessoal a entrelaçar museu, memória e inquietações sobre o tema. Pesquisa-se muito sobre inúmeros aspectos da museologia. Quantas pesquisas trazem o olhar daqueles que nasceram e cresceram nesses espaços? Quais são as marcas em ser filha de um museu? Qual a relevância das histórias das pessoas que fazem os museus acontecerem, junto aos saberes museais, à educação, à divulgação científica e ao entretenimento? As pessoas que compõe os museus – funcionários, docentes, pesquisadoras e pesquisadores – também são uma comunidade, a dar vida a tudo o que ali acontece, estabelecendo as relações – tão fundamentais – entre conhecimento, objetos, público, sociedade.
Nesse ensaio, dialogando com diversos autores, apresento a narrativa pessoal de alguém que nasceu em um museu. Ao me debruçar sobre essa memória, as perguntas vão surgindo e dando corpo a temas que pairam em muitas pesquisas qualitativas em educação, em especial as relacionadas à museologia. Penso junto a Walter Benjamin e seu ensaio sobre a narrativa e a experiência. Continuando o tema, Jorge Larrosa traz não só a importância da experiência, mas os modos como falamos sobre ela. Ecléa Bosi respalda o pensamento acerca da memória. Mario Chagas é o autor a sustentar as aproximações entre essa narrativa e a museologia. Uma narrativa que trata dos afetos, da alegria do bom encontro, ancorada em Espinosa, e expande suas questões para a educação, junto a pesquisadores da educação museal: como essa infância tão singular me compõe?
Mario Chagas, poeta e museólogo, em palestra proferida no Sesc-SP (CHAGAS, 2019a), começa sua fala apresentando uma “clave de três princípios”: “a museologia que não serve para a vida não serve para nada”; a “museologia do afeto. Em tempos precários, o amor e o afeto são revolucionários.”; e, por fim, “é importante ocupar a palavra e o conceito ‘museu’”. Os princípios oferecidos por Mario Chagas são a base desse texto. Ainda que se trate de um museu de ciências, muito próximo, talvez, de modelos tradicionais, o relato aponta para uma outra relação: a de uma vida que se iniciou ali, permeada pelo afeto de uma comunidade, em que crianças ocuparam não só o local, mas a palavra, tendo a oportunidade de vivenciar momentos únicos naquele espaço. Para Chagas (2019b):
A museologia há de servir não apenas à preservação de coisas, objetos e artefatos, mas à valorização da vida em sociedade, não à vida orgânica e biológica apenas, mas à vida como relação, como vivência e convivência, como potência não orgânica da vida, como potência de criação e de resistência. (, pp. 124 e 125)
Trazer essa narrativa para o espaço acadêmico é correr riscos: universalizar a experiência e tirar dela justamente seu caráter singular (LARROSA, 2016). É comum nesse ambiente dar à experiência um ponto de vista objetivo, teorizá-la, esvaziar seu sentido de tanto “escavá-la”. Ainda assim, acredito que o risco vale, pois a própria palavra experiência traz também o sentido de perigo (LARROSA, 2016). O que me atravessou pode atravessar outros.
Para esse ensaio, adoto a 1ª pessoa (às vezes, do plural, quando me refiro às lembranças junto a minha irmã, às vezes, do singular) – não só por ser uma história pessoal ou uma narrativa. Seguindo Larrosa, é por se tratar de alguém que conta a história de pessoas e que se dirige a outras. Um texto, ainda que acadêmico, mas que busca um diálogo. O uso da primeira pessoa também implica riscos, no entanto, como traz Larrosa:
Falar (ou escrever) na primeira pessoa não significa falar de si mesmo, colocar a si mesmo como tema ou conteúdo do que se diz, mas significa, de preferência, falar (ou escrever) a partir de si mesmo, colocar a si mesmo em jogo no que se diz ou pensa, expor-se no que se diz e no que se pensa. (., p. 70)
Para além de pesquisadora, é como humana a narrar sua história que inicio esse texto: alguém que sente, não é neutra, é política, está no social. Não é possível medir a dimensão das experiências, mas é certo dizer que minha vida, literalmente, começa ali, na Avenida Nazaré, 481, Ipiranga, São Paulo – SP, e, de alguma maneira, ainda ressoa em mim e me compõe.


